Por: Caroline | 13 Mai 2014
“A história de Noé contém um elemento próprio que a diferencia não apenas do relato do fim do mundo, mas também da aniquilação indiscriminada da humanidade, que é o da sobrevivência planejada dele e de sua família em contraste com a morte certa dos demais. Esta ideia, a de um grupo de eleitos como sobreviventes do fim do mundo é, do meu ponto de vista, o elemento ideológico central”, é o que aponta Josep Crosas, em artigo publicado por Rebelión, 10-05-2014. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Há algumas semanas circula em nossos cinemas o filme norte-americano Noé, a última versão hollywoodiana sobre o gênero épico-religioso. O propósito deste artigo não é fazer uma crítica cinematográfica, mas buscar compreender o sentido que o resgate deste famoso relato bíblico pode ter no momento vivido atualmente.
Como se sabe, a história de Noé é, antes de tudo, a história de um hipotético fim do mundo desencadeado pela obra de Deus. Javé decide destruir a humanidade corrompida através de um gigantesco dilúvio que inunda completamente a Terra. Contudo, simultaneamente, ele escolhe Noé e seus descendentes como os únicos sobreviventes humanos. Para isso proporciona instruções concretas sobre a construção de uma arca, uma embarcação indestrutível capaz de resistir à inundação apocalíptica com uma carga preciosa de espécies animais que iriam repovoar a Terra após o dilúvio.
A escolha de Hollywood por recriar hoje em dia este mito pode ter mais de uma justificativa, contudo, e, sobretudo, está relacionada ao alarme criado pelas catástrofes naturais como inundações, tsunamis, terremotos, furacões... que parecem se multiplicar por todo o planeta, o que gerou uma recente onda de filmes do gênero catastrófico. No fundo está presente uma consciência da ameaça que paira sobre o mundo de hoje, causada pela crise ecológica e demográfica, e, sobretudo, da mudança climática, com previsões apocalípticas que aprecem dobrar a esquina.
Não é de estranhar que o cinema se alimente dos medos que esta situação provoca, cumprindo sua função de fornecedor de pesadelos, sonhos e ficções para o espectador contemporâneo. Este, acostumado a digerir todo tipo de histórias, em boa medida horripilantes, identificará sua angustia com a dos protagonistas, sem chegar e ter verdadeiramente se afetado pelos sofrimentos destes. Finalmente, o papel catártico do cinema culmina com algum tipo de mensagem ambiguamente tranquilizadora como a qual associa-se o filme Noé: “o fim do mundo... é só o início”.
Contudo a história de Noé contém um elemento próprio que a diferencia não apenas do relato do fim do mundo, mas também da aniquilação indiscriminada da humanidade, que é o da sobrevivência planejada dele e de sua família em contraste com a morte certa dos demais. Esta ideia, a de um grupo de eleitos como sobreviventes do fim do mundo é, do meu ponto de vista, o elemento ideológico central.
Curiosamente, isto é algo que se repete em dois dos filmes de maior sucesso de um dos principais diretores do cinema de catástrofes da última década, Ronald Emerich, autor do O dia depois de amanhã e 2012. Seus filmes são geralmente caracterizados pelo escasso realismo e a dimensão planetária da catástrofe que enfocam. Porém, e principalmente, em ambas está presente a hipótese de uma possível sobrevivência para um setor reduzido e expressamente selecionado de população. Em O dia depois de amanhã, ela pode ser observada na maneira pela qual o corpo militar recolhe os sobreviventes da glaciação repentina do hemisfério norte... para recomeçar, dizem, uma nova vida em uma latitude mais quente. Em 2012, a sobrevivência é um plano ultrassecreto a nível das grandes potencias, que fixam um numerus clausus para uma minoria com influência, destinada a salvar-se e reiniciar o mundo após sua completa destruição.
Este é claramente o tema de Noé e sua célebre Arca. Entretanto trata-se também de uma hipótese que flutua no ar de outros ambientes. Por exemplo, tal extremo foi formulado pelo cientista J. Lovelock, auto da Teoria de Gaia, que garante que a mudança climática irá resultar numa grave deterioração das condições de vida na Terra, tornando-a majoritariamente inabitável. No tocante a população mundial, ela irá ser reduzida drasticamente e haverá possibilidade de sobrevivência apenas para aqueles grupos que vivem ao redor do novo oceano que irá surgir a partir do descongelamento... Num total de poucas centenas de milhões.
Estas afirmações podem ser consideradas totalmente fantasiosas, tal qual as dos atuais filmes hollywoodianos de viés apocalíptico, mas isso não diminui a credibilidade do pressuposto ideológico por trás: a vontade de sobrevivência por alguns, frente o colapso da sociedade atual.
Para acabar, dois pontos biográficos do citado diretor dos filmes desse gênero, R. Emerich, nascido na Alemanha e nacionalizado estadunidense. O primeiro ponto relaciona-se com sua origem como alemão e filho de um endinheirado empresário que, de acordo com sua idade, poderia ter sido influenciado pelo nazismo. Insinuamos isto não apenas pela conhecida conexão entre elites milionárias e o regime de Hitler, mas porque a ideia exposta sobre a organização da sobrevivência ao fim do mundo da raça superior ou do grande estado alemão como herdeiro do mundo, uma vez que este tivesse sido completamente conquistado.
O outro detalhe é ainda mais sintomático e refere-se ao trabalho acadêmico que este diretor apresentou em forma de tese há algumas décadas: um ensaio sobre a Arca de Noé, fato que demonstra a persistência dessa ideia. Não tive a ocasião de ler o documento, contudo é quase certo que ali está justificada esta opção a partir de diferentes pontos de vista...
Hollywood tem sido definida historicamente como “a fábrica de sonhos” e isto tem uma clara acepção freudiana. Nos sonhos, a dormente saída para as ideias reprimidas é feita de maneira encoberta, sem que a irrupção destas chegue a despertar, impedindo o descanso. É algo assim que constrói o cinema, ilustrando sonhos não tão coletivos, mas específicos das elites que controlam tal indústria. Os sonhos projetados na tela equivalem aos seus desejos mais íntimos, mais ou menos manifestos, com os quais um público dócil e adestrado acabará por se identificar. Agora, frente a um panorama cada vez mais sombrio a respeito do futuro, as instâncias dominantes que existem por detrás de Hollywood nos mostram de maneira muito explícita que confiam em sua subida na Arca.
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Noé, um mito inquietante para um tempo de catástrofes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU